Lugar Comum:
travessias e
coletividades
na cidade
"No cerne da necessidade de uma política que transformasse a vida, e que pudesse ser transformada por ela, não havia reclamação contra a injustiça, mas o desejo de encontrar a boa voz para o corpo de cada um, a fim de combater o profundo sentimento de ser falado por outros (...)"
— Claire Fontaine
"Quando o espaço é inteiramente familiar, ele se torna lugar."
— Lina Bo Bardi
Segundo a ONU – Organização das Nações Unidas – atualmente 55% da população mundial vive em áreas urbanas e a expectativa é de que esta proporção aumente para 70% até 2050¹. A cidade é a realidade cotidiana da maior parte da população mundial e entender sua formação e suas transformações é uma forma de começar a entender como nos concebemos como comunidade hoje. Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, as funções históricas tradicionais da cidade são a "troca (o comércio), a informação, a vida cultural e o poder"², esses quatro aspectos implicam comunicação e contato e nesta perspectiva a cidade compreende por definição, a experiência de relação com um outro. Voltar ao passado para não se perder no presente e imaginar um futuros possíveis.
Concebendo a urbanização numa perspectiva histórica ampliada e mundializada, vemos que à medida que a urbanização se expandiu em território e população desde o século XIX, a cidade se tornou um espaço de convivência de muitos. No sul global, o crescimento desordenado das aglomerações emoldurou enormes dificuldades de sobrevivência para a grande maioria dos cidadãos - oque tem ecos na própria formação das sociedades pós-coloniais. Durante o século XX, a sobreposição de temporalidades causada pelo desenvolvimento tecnológico e a grande densidade física experimentadas cotidianamente no espaço urbano concretizaram uma espécie de caos que levou a processos de massificação de sensibilidades e de invisibilização de singularidades de forma bastante violenta e que ainda estão em curso. São Paulo como outras grandes metrópoles é uma aglomeração bastante diversa, mas seus cidadãos vivem a maior parte do tempo em bolhas de socialização muito pautadas pelos processos de individualização da organização contemporânea do trabalho e da renda. Vivemos de forma cada vez mais autônoma (e autômata) em percursos que fazemos juntos sem realmente nos encontrarmos.
Diante disso, as possibilidade de que pessoas tão diversas consigam entender a perspectiva umas das outras, no sentido de um sentimento coletivo de pertencimento, torna-se cada vez mais difícil. Numa entrevista dada à revista Gama, publicada no dia 2 de abril, o psicanalista Cristian Dunker afirma que para produzir esse sentimento de pertença a um grupo, “precisamos de um gosto pela experiência da dissolução de si, em uma relação em que a nossa individualidade é provisoriamente suspensa. Essa experiência não vale para a massa, mas para comunidades, onde se tem uma experiência comum, que é asseguradora e indutora do nosso sentimento de pertença." Nesse sentido, a potência da cidade como território do encontro e palco da experiência do comum pode ainda ser possível quando ela é experimentada como comunidade.
Pensar e conceber a cidade como comunidade, ou como lugar comum é o desejo dessa proposta. A exposição pretende dar espaço às formas de imaginação que exploram a colaboração, as possibilidades de diálogo entre diferentes e de aprendizado mútuo, de escuta e de comprometimento com o coletivo. Nosso projeto experimenta tornar visível a personificação da vida ativa em conexão com o entorno, criando situações e experiências que nos permitam enxergar a cidade desde a perspectiva do comum, concretizado no espaço público do parque Ibirapuera. Mais especificamente, neste projeto curatorial queremos pensar o desdobramento da noção de público, de experimentação e de colaboração em obras que sejam por elas mesmas a formalização dessas ideias. Visando ter em conta um debate entre as esferas estéticas e sócio-políticas e envolvendo não somente artistas e trabalhadores culturais, mas também profissionais e agentes de outras aéreas.
Considerando que toda produção artística é um ato de reflexão sobre o mundo e para o mundo, teoricamente a arte é sempre “pública” ou ela deveria ser. Nese sentido, a questão do acesso à arte se torna imperativa e tanto mais urgente quando é crescente o processo de exclusão social na sociedade contemporânea. Fazer arte para e com o espaço público é, portanto, uma forma de pensar sobre a própria função da arte.
A questão abordada aqui, ganhou uma dimensão ainda mais urgente nos últimos meses. A realidade lançou um chamado para praticarmos nosso senso de colaboração pois a cada novo caso de infecção por Covid19 (corona vírus) reportado é a humanidade como um todo que sofre as consequências. Fomos lembrados de que fazemos parte de uma grande comunidade. Precisamos aprender a viver juntos novamente e enxergar no outro um igual na sua singularidade. Somos dependentes de nós mesmos e a cidade é uma evidência disso.
Camila Bechelany
Curadora
1 Dados disponíveis em: https://news.un.org/pt/story/2019/02/1660701
2 LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades: conversas com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP, 1998, pp. 29.
3 Via https://gamarevista.com.br/conversas/um-brasil-menos-polarizado/ consultado em 2 de abril de 2020
Curadoria
Camila Bechelany
Camila Bechelany é curadora independente, pesquisadora e editora. Em 2020 ela esteve em residência curatorial no BAR Project em Barcelona. Em 2019, ela foi curadora da residência artística Pivô Pesquisa em São Paulo e membro do grupo de críticos do Centro Cultural São Paulo 2019. Como curadora convidada da Pinacoteca de São Paulo realizou a exposição Artur Lescher: Suspensão (2019). Foi curadora-assistente do Museu de Arte de São Paulo – MASP entre 2016 e 2018, onde co-curou a exposição coletiva Histórias da sexualidade e as individuais de Guerrilla Girls, Wanda Pimentel, Teresinha Soares e Cândido Portinari entre outros. Entre seus projetos independentes estão a exposição Parques e outros pretextos, trabalhos Patrícia Leite e Cristiano Rennó, galeria Mendes Wood, São Paulo (abril, 2019) e as publicações Revista Pivô e Imannam. É mestre em Artes & Políticas Públicas pela Universidade de Nova York (NYU) e em Antropologia Cultural pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris onde finaliza seu doutorado em História e Sociologia da arte.
Assistente de curadoria:
Khadyg Fares
Khadyg Fares é formada em Comunicação Social pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e graduanda em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. Integrou o núcleo de curadoria da Pinacoteca de São Paulo entre 2018 e 2020 onde atuou como assistente curatorial das exposições Fernanda Gomes, Gravura e crítica social: 1925-1956, (2020); Somos muit+s: experimentos sobre coletividade; Rosana Paulino: a costura da memória e Trabalho de artista: imagem e autoimagem (1826-1929), exibidas em 2019. Entre 2016 e 2017 trabalhou na área de pesquisa do Arquivo Histórico Wanda Svevo da fundação Bienal de São Paulo. Foi coordenadora do COCAAL - Colóquio de Cinema e Arte na América Latina (2017 e 2019).