Uma exposição que tem por método curatorial o comissionamento de obras, resulta na materialização de trabalhos inéditos, o que por si só já é um excelente projeto. Mas talvez a maior potência desta forma de realizar seja a possibilidade de acompanhar junto as/os artistas o desenvolvimento de suas obras, vê-las saírem do papel e tomarem forma no espaço (seja ele físico ou virtual). Durante a construção da 10ª Mostra 3M de Arte – Lugar Comum: travessias e coletividades na cidade presenciamos a concretização de dez obras, sendo seis de artistas convidados pela curadoria e quatro oriundas de projetos selecionados via edital de alcance nacional. Vimos os projetos das as/os artistas que tinham como objetivo principal ocupar as áreas verdes do Parque Ibirapuera ganhar corpo a cada dia se transformando ao longo do período, criando novas camadas de significados e incorporando questões conceituais.
Por quase quatro meses acompanhamos quase diariamente o processo de trabalho de Camila Sposati, Cinthia Marcelle, Coletivo Foi à Feira, Diran Castro, Gabriel Scapinelli e Otávio Monteiro, Lenora de Barros, Luiza Crosman, Maré de Matos, Narciso Rosário e Rafael RG. Surgiu neste decorrer o interesse de registrar parte deste valioso trajeto de desenvolvimento dos trabalhos e uma forma encontrada pela curadora Camila Bechelany foi a de disponibilizar para as/os artistas espaços de intervenção no catálogo da Mostra. Essas criações, realizadas também pelas/os próprias/os artistas, resguardam marcas do processo de pesquisa, concepção e materialização das obras.
A dupla Gabriel Scapinelli e Otávio Monteiro, por exemplo, cuja obra leva o nome [terra>tijolo=forno]+farinha*pão escolheu lançar uma “Convocatória para arte de fazer pão” (imagem 1). Essa chamada pública buscava reunir registros de produção caseira de pães, mas também somava-se nesta iniciativa intenção de criar uma rede de pessoas que pudessem colaborar e trocar com os artistas. As imagens recebidas foram selecionadas pela dupla e integram o catálogo em um formato de um cartaz cuja composição foi realizada por Scapinelli e Monteiro.
Ainda sobre o acompanhamento das obras é preciso relembrar que ao longo do período de desenvolvimento dos projetos muitos de nós, isso inclui as/os artistas estivemos confinados. O isolamento social, medida utilizada para a contenção da crise sanitária ocasionada pelo novo coronavírus, fez com que grande parte do processo de elaboração e concretização dos trabalhos fosse realizada à distância. Com a incerteza sobre a reabertura dos parques da cidade de São Paulo , os projetos foram repensados diante deste novo contexto.
O Coletivo Foi à Feira, na primeira fase de realização do projeto Objeto horizonte decidiu fazer a captação de áudio de entrevistas com trabalhadores do Parque Ibirapuera ainda durante o período em que o acesso aos parques estava reduzido . É certo que não havia visitantes no parque naquele momento mas muitos dos trabalhadores continuavam a fazer seus trajetos cotidianos. As falas desses colaboradores aparecem na obra mixadas aleatoriamente a uma “sonoridade pandêmica” como os barulhos dos aplicativos de mensagens instantâneas que se fizeram muito presentes em nosso cotidiano durante o período de confinamento.
Em O QUE OUVE obra de Lenora de Barros, a artista que faz parte do grupo de risco da pandemia, elaborou uma construção poética que teve que ser gravada na própria residência da artista já que não poderia se deslocar ao estúdio de gravação diante do risco durante o período de quarentena.
Outro projeto que teve seu formato repensado foi o Púlpito Público de Maré de Matos. Preocupada que sua obra pudesse provocar uma “aglomeração” de pessoas, a artista resolver fazer adaptações que incidiam de forma crítica ao contexto atual (crise em razão do Covid-19) A nova configuração do projeto inclui: um recurso para impossibilitar o acessos dos visitantes e atribuição de dispositivos sonoros que transmitem depoimentos colhidos previamente por Matos.
O que é interessante de se analisar sobre o formato de “comissionamento de obras” é a possibilidade de se fazer uma reflexão do trabalho de arte voltada para o processo, para a elaboração, para a “construção” da obra. Nesse caminho que vai do projeto até a sua materialização parecem estar mais evidentes e perceptíveis a estrutura e as camadas de significação das obras a partir de sua concepção. Sendo possível ainda perceber, como no decorrer do processo, não só o lugar onde será instalada interfere em sua constituição, em nosso caso o Parque Ibirapuera, mas também como o contexto se torna quase um elemento de modulação do próprio projeto.
Por Khadyg Fares
***crédito da imagem da capa – Foto por Khadyg Fares – registro realizado durante a montagem da obra [terra>tijolo=forno]+farinha*pão de Gabriel Scapinelli e Otávio Monteiro, novembro de 2020